É bem provável que não exista nada que o incomode mais do que pessoas com pêlos na orelha. Como pode um sujeito vê-las assim e não fazer nada a respeito? Muita gente assim já tinha passado pela sua frente e pela sua vida, mas a pessoa em questão era um subalterno, o caixa de supermercado que, por um descuido estúpido, passou na registradora o pacote de Doritos três vezes. Em que mundo uma pessoa come três pacotes de Doritos sozinha?
Estranho como uma coisa tão insignificante serve como a gota d’água para genocídios e injustiças globais. Mas serve. O sangue lhe ferveu e, ao invés de mandar o gerente tomar no cu, teve outra idéia.
Terminou a carta e tirou os óculos. Ponderou um pouco e resolveu manter seus sapatos. Subiu as escadas e abriu, com certa dificuldade, a porta que ninguém abria. Lá, no teto, havia muita sujeira, grandes antenas e dois ninhos de pombos, que saíram voando ao vê-lo. O céu parecia estar mexendo sozinho, deu-lhe uma ponta de vertigem. Mas ignorou olhando para os próprios pés. Não é uma vertigenzinha que vai me impedir de fazer isso, pensou enquanto caminhava para a borda, e pulou.